Marlene Almeida: veios da terra

Para além da chamada crise climática, o que testemunhamos hoje pode ser percebido como uma profunda mutação: erosões, extinções e derretimentos nos anunciam um mundo em transição. Bruno Latour (1947-2022), antropólogo francês, caracterizou a Terra enquanto Gaia, uma força mítica, ao mesmo tempo científica e política, que irrompe na história do mundo, nos cobrando determinadas revisões. 

Em meio a esse cenário, é importante dizer que a obra de Marlene Almeida (1942), artista paraibana, envolve uma necessária reconexão com a terra. Sua atuação como ativista também é notória, sendo sócia-fundadora da primeira entidade ambiental criada na Paraíba, a Associação Paraibana dos Amigos da Natureza (APAN), que está ativa até hoje, e parte do Movimento de Artistas pela Natureza. A presente mostra exibe uma produção recente da artista, com trabalhos realizados entre 2019 e 2024. 

Desde a década de 1970, a artista investiga o solo brasileiro como organismo vivo, explorando matéria, tempo e território por meio de práticas de expedição, nas quais identifica e estuda solos e suas formações. A partir disso, recolhe amostras de sedimentos de diferentes regiões, utilizando suas tonalidades, texturas e cheiros como insumos de criação. Dessa forma, cria um inventário de fragmentos onde cada parte é inscrição temporal e territorial, como partículas capazes de guardar vestígios.

Seu ateliê funciona simultaneamente como laboratório e museu não institucional. Os elementos orgânicos se transformam em pigmento, gerando uma paleta incomum e situada a partir das regiões que visita, em um gesto implicado. Tons terrosos, ferrugem, terracota e cinza condensam ideias de transmutação: A cor não se preocupa com o tempo, diz a artista. Cores essas que são reunidas em pequenos recipientes, conformando o chamado Museu das terras brasileiras. Na obra Terra livre (2019), reúne amostras caracterizadas por suas diferentes origens geográficas – sertão, cariri, brejo e litoral da Paraíba. Em Veredas V (2022) e Cordilheira (2022), especificações vegetais e topológicas aparecem em seus títulos, dando a ver as relações estabelecidas durante expedições. 

O uso de recursos trazidos diretamente da natureza é feito sem sucumbir a categorias estagnadas, tais como a própria ideia de natureza como algo estático e inerte, o que dá lugar à possibilidade de coexistência polifônica de diferentes modos de existência. Veios da terra (2024) são pinturas que trazem formas orgânicas ramificadas, feito rizomas, evocando tanto a imagem dos fluxos que acontecem sob o solo, como a ideia das conexões entrelaçadas entre o mundo humano e o não humano. Já em Terra da saudade (2024), observamos uma fenda que revela a raiz de uma árvore percorrendo diferentes direções.

Os densos campos de cor e suas texturas, as manchas e rugosidades em camadas sobrepostas sugerem fluxos ao olhar, como se a matéria seguisse se rearranjando, por meio de passagens e novas formações. A percepção de suas obras é, desse modo, algo que nos guia para uma escuta desde o interior dos materiais, evocando as dinâmicas transformativas da terra. Em Aguda como Serra II e Aguda como Serra III (2024), tons cinzentos e avermelhados comparecem para dar densidade a figuras de montanhas e penhascos. As manchas aguadas conformam uma textura única, que remete à expressividade própria da terra, algo que atravessa sua prática pictórica constantemente.

Marlene Almeida pratica uma escuta profunda em contato direto com o ambiente. No lugar da dominação e da extração, entra em cena a ideia de cooperação. Em um processo minucioso e ritualístico, adota uma postura alquímica, como se respondesse à convocação de Gaia mencionada anteriormente. Isabelle Stengers (1949), filósofa e historiadora belga, propõe reativarmos o termo “magia”, nos desprendendo de seu uso metafórico e pensando-o como uma dimensão capaz de nos colocar em relação com as coisas. Há um gesto ético no fazer da artista, que é a um só tempo mágico e político, quando instaura um método do encantamento diante do contato entre sujeito e os elementos não humanos. Sua prática se tece junto à terra que respira.  

O pensamento de Antônio Bispo dos Santos (1959-2023), filósofo, escritor e líder quilombola brasileiro, ajuda a compreender essa relação de envolvimento. Nêgo Bispo, como ficou popularmente conhecido, caracteriza a terra como um anseio original e explica que o saber tradicional a entende como organismo relacional, formado por todos os seres que a compartilham. Em contraste, as práticas agrárias modernas, com seu plantio linear e monocultor, romperam a harmonia que o plantio triangular preservava. A erosão e o desequilíbrio, assim, não são apenas ambientais, mas também epistemológicos – resultado de um afastamento entre corpo e terra. 

A produção de Marlene Almeida se inscreve, dessa forma, em um campo de pensamento e de prática capaz de reagir às urgências contemporâneas. Ao trabalhar com o solo, mobiliza simultaneamente ciência, espiritualidade, arte e política, gerando caminhos de reimaginação da ideia de natureza. A terra, aqui, deixa de ser um cenário e passa a ser protagonista, uma força pensante que nos convoca a reimaginar as possibilidades de relação com o mundo.

OBRAS

Foto da obra de Marlene Almeida

Marlene Almeida

História da terra, 2024
base, pigmentos minerais naturais, e resinas sobre lona (políptico composto por 6 telas)
110 x 300 cm

Foto da obra de Marlene Almeida

Marlene Almeida

Terra livre, 2019
7 sacos de tecido de algodão cru, contendo terras de regiões variadas do Brasil (sertão, cariri, brejo e litoral paraibano)
dimensões variadas

Foto da obra de Marlene Almeida

Marlene Almeida

Marrom como sombra III, 2024
faixas de lona crua pintadas com pigmentos minerais naturais, aglutinantes
145 x 50 cm